Conto Português

Casa de Vô

Duração: 00:00 • Ano: 2023 • Idioma: Português

casa de avo de beatriz vichessi

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Autora Beatriz Vichessi

Narrado por Flávia

Transcrição

Todo avô toma remédio, usa dentadura e tira soneca depois do almoço. O meu, não.
Não toma pílula nem xarope. E, à tarde, fica acordado, brincando comigo. Dentadura?
Isso ele usa. Mas, de resto, é diferente.
Minha avó também não é igual às outras. Enquanto toda avó borda e faz bolo de chocolate,
ela só costura para fazer remendos nas roupas e só cozinha no fim de semana.
E quase nunca está em casa. De calça comprida (enquanto todas as avós do mundo usam saia),
sai cedinho para trabalhar e nos deixa sozinhos.
Daí, o guarda-roupa dela vira elevador. Basta eu entrar e me sentar nas caixas de sapatos
para vovô encostar as portas e, como ascensorista, anunciar:
– Primeiro andar! Roupas e bonecas.
Segundo andar! Balas de goma, móveis e crianças perdidas…
A parede da sala é transformada em galeria de arte com pinturas emolduradas em fita crepe
e o tapete em tablado de exposição de botões raros, que jamais combinariam com qualquer roupa normal.
Ao cair da tarde, na garagem vazia, enquanto o papagaio e os cachorros conversam misturando latidos,
uivos e risadas, ele espalha alguns pedacinhos de papel pelo chão. É a brincadeira do Pisei.
– Hã? Como assim? – pergunto.
– Essa é nova.
Vovô explica sua invenção:
– Memorize onde estão os papéis. Feche os olhos e comece a caminhar. Tente pisar em cima deles.
Pode ir perguntando “Pisei?” para facilitar. Ganha o jogo quem pisar em mais pedaços.
– Eu começo.
– Pisei? – pergunto, dando o primeiro passo, apertando os olhos.
– Não!
– Pisei? – insisto mais uma vez, depois de caminhar um tiquinho.
– Não!
Ouço um barulho de chaves. Vovó chega, cansada, do trabalho. Diz “Oi”. Sei que é para mim,
mas não posso abrir os olhos para responder. É quebra de regra.
– Tudo bem, vó? Quer brincar de Pisei? – convido.
– Agora, não, minha riqueza. Vovó vai descansar.
Vovô continua a me guiar, já sentado na cadeira de praia, lendo o jornal. Não vi, mas escutei
o barulho dela sendo armada e das folhas nas mãos dele.

Sigo.
– Pisei?
– Pisei?
– Pisei?
E nada.
Sinto meus pés tropeçarem em algo. Abro os olhos. Vovô, à minha frente, de braços abertos,
pronto para um abraço de vitória.
– Mas eu não pisei em nenhum papelzinho, vô – digo, meio desanimada, mas já engalfinhada
e feliz nos braços dele.
– O vento foi levando tudo para o cantinho do portão – ele explica, sorrindo.
– E por que o senhor não me avisou? A gente poderia ter colado os pedacinhos no chão e recomeçado…
– Porque eu queria que a brincadeira terminasse com você perto de mim.

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